O interrogatório que o padre Manuel Formigão fez aos três pastorinhos. O seu objetivo era saber se os acontecimentos de Fátima eram obra de Deus.
Quando, há 100 anos, três crianças afirmaram ter visto Nossa Senhora em cima de uma azinheira na Cova da Iria, ninguém previa que aquele lugar desconhecido junto a Fátima, em Ourém, se tornaria num dos principais centros de culto mariano do mundo, visitado pelos Papas e por milhares de peregrinos todos anos. Na altura, as três crianças — Lúcia, Francisco e Jacinta — foram interrogadas dezenas de vezes sobre o que diziam ter visto, tanto pelas autoridades civis como pelas religiosas, que, inicialmente, duvidavam da veracidade dos relatos. O que realmente aconteceu em Fátima ainda hoje divide a sociedade e a própria Igreja.
O interrogatório aos três pastorinhos na íntegra
O reconhecimento das aparições como fenómeno divino pela Igreja, em 1930, resultou de um longo processo canónico que começou precisamente com os extensos e repetidos interrogatórios às três crianças. Fundamental nesse processo foi o padre Manuel Nunes Formigão, um sacerdote nascido em Tomar e nomeado pelo então bispo de Leiria para a Comissão Canónica que estudou os acontecimentos de Fátima.
O interrogatório aos três pastorinhos na íntegra
A 27 de setembro de 1917 — já os pastorinhos tinham relatado cinco aparições e anunciavam um grande acontecimento para o dia 13 de outubro –, o padre Formigão deslocou-se à aldeia de Fátima para falar mais uma vez com Lúcia, Francisco e Jacinta. Queria saber mais detalhes sobre o que as três crianças diziam ver, todos os dias 13 desde maio. Depois, escreveu um relatório em que transcreveu os diálogos que manteve com cada uma das crianças, que lhe contaram todos os detalhes do que tinham visto.
O interrogatório aos três pastorinhos na íntegra
No fim, ficava ainda a pergunta: “Serão os acontecimentos de Fátima obra de Deus? É cedo demais para responder com segurança a esta pergunta”.
O interrogatório aos três pastorinhos na íntegra
Reproduz-se, na íntegra, o relatório do padre Manuel Formigão, atualmente parte do arquivo das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima, uma congregação religiosa fundada pelo próprio sacerdote na década de 40. O texto foi também incluído na Documentação Crítica de Fátima, uma compilação de toda a documentação relativa aos acontecimentos de Fátima editada pelo Santuário. Leia-o a seguir.
“No intuito de completar as impressões colhidas no dia 13 do corrente mês de Setembro e habilitar-me com os elementos indispensáveis para fundamentar um juízo, tanto quanto possível, acertado acerca dos acontecimentos que nos últimos cinco meses se têm desenrolado a três quilómetros ao sul da aldeia de Fátima, no local denominado Cova da Iria, fui pela segunda vez na quinta-feira última, 27, àquela pitoresca aldeia, graciosamente alcandorada num dos contrafortes da majestosa serra de Aire. Eram três horas da tarde quando me apeei do trem que de Torres Novas me conduzira por Vila Nova de Ourém à humilde povoação, cujo nome é hoje pronunciado como uma esperança fagueira de bênçãos e graças celestes por dezenas de milhares de lábios, de um extremo ao outro de Portugal. O rev.do Pároco a quem logo procurei, não estava em casa: tinha saído para fora da freguesia e só à noite devia voltar. Pesaroso por não poder trocar algumas palavras com ele sobre o assunto que ali me levava, resolvi ir a casa das crianças que se dizem favorecidas com aparições da Virgem Santíssima e ouvir da boca delas a narração pormenorizada dos estranhos sucessos cuja notícia tem atraído dia a dia à Fátima um sem número de pessoas de todas as classes e condições sociais.
O interrogatório aos três pastorinhos na íntegra
À distância de dois quilómetros da igreja paroquial e do presbitério, num insignificante lugarejo chamado Aljustrel, pertencente à freguesia, ficam situadas perto uma da outra, as modestas habitações das famílias dos videntes. As duas crianças mais novas estavam ausentes.
Dirigi-me a casa da mais velha, onde a mãe me convidou a entrar e sentar-me, convite a que acedi. A uma pergunta minha sobre o paradeiro da filha que eu procurava, respondeu-me que ela andava a vindimar numa pequena propriedade que lhe pertencia e que ficava dois quilómetros distante.
Pesaroso por não poder trocar algumas palavras com ele [o pároco de Fátima] sobre o assunto que ali me levava, resolvi ir a casa das crianças que se dizem favorecidas com aparições da Virgem Santíssima e ouvir da boca delas a narração pormenorizada dos estranhos sucessos cuja notícia tem atraído dia a dia à Fátima um sem número de pessoas de todas as classes e condições sociais
Padre Manuel Nunes Formigão
Alguém se prestou logo a ir chamá-la de ordem da mãe. Entretanto, as duas crianças mais novas, que tinham regressado do campo, sabendo pelos vizinhos que eu lhes desejava falar, vieram ter comigo. Eram dois irmãos, um menino e uma menina.
O interrogatório aos três pastorinhos na íntegra
Chegou primeiro a menina. Chama-se Jacinta de Jesus, tem sete anos de idade e é filha de Manuel Pedro Marto e de Olímpia de Jesus. Bastante alta para a sua idade, um pouco delgada sem se poder dizer magra, de rosto bem proporcionado, tez morena, modestamente vestida, descendo-lhe a saia até à altura dos artelhos, o seu aspeto é o de uma criança saudável, acusando perfeita normalidade no seu todo físico e moral. Surpreendida com a presença de pessoas estranhas, que me tinham acompanhado e que não esperava encontrar, a princípio mostra um grande embaraço, respondendo, por monossílabos, e num tom de voz quase impercetível, às perguntas que eu lhe dirijo. Momentos depois aparece o irmão, rapaz de nove anos de idade, que entra com um certo desembaraço no quarto, onde estávamos, conservando o barrete na cabeça, decerto por não se lembrar de que o devia tirar. Um sinal que a irmã lhe fez para se descobrir não foi percebido por ele. Convidei-o a sentar-se numa cadeira ao meu lado, obedecendo imediatamente sem nenhuma relutância. Principiei sem demora a interrogá-lo sobre o que tinha visto e ouvido desde maio último na Cova da Iria no dia 13 de cada mês durante o tempo da aparição. Estabeleceu-se entre mim e ele o curto diálogo que segue.
– Que é que tens visto na Cova da Iria nos últimos meses?
– Tenho visto Nossa Senhora.
– Onde aparece ela?
– Em cima duma carrasqueira.
– Aparece de repente ou tu vê-la vir de alguma parte?
– Vejo-a vir do lado onde nasce o sol e colocar-se sobre a carrasqueira.
– Vem devagar ou depressa?
– Vem sempre depressa.
– Ouves o que ela diz à Lúcia?
– Não ouço.
– Falaste alguma vez com a Senhora? Ela já te dirigiu a palavra?
– Não, nunca lhe perguntei nada; fala só com a Lúcia.
– Para quem olha ela, também para ti e para a Jacinta, ou só para a Lúcia?
– Olha para todos três; mas olha durante mais tempo para a Lúcia.
Jacinta, que andava a brincar na rua com outras crianças, fi-la sentar num banquinho ao pé de mim e submeti-a também a um interrogatório, conseguindo obter dela respostas completas e minuciosas, como as do irmão.
– Tens visto Nossa Senhora no dia 13 de cada mês desde maio para cá?
– Tenho visto.
– Donde é que ela vem?
– Vem do Céu, do lado do sol.
– Como está vestida?
– Tem um vestido branco, enfeitado a ouro, e na cabeça tem um manto, também branco. Em volta da cintura há uma fita doirada que desce até à orla do vestido.
– Usa botas ou sapatos?
– Não usa botas nem sapatos.
– Então tem só meias?
– Parece que tem meias, mas talvez os pés sejam tão brancos que pareçam trazer meias calçadas.
Jacinta Marto, em resposta ao padre Formigão
– Usa botas ou sapatos?
– Não usa botas nem sapatos.
– Então tem só meias?
– Parece que tem meias, mas talvez os pés sejam tão brancos que pareçam trazer meias calçadas.
– De que cor são os cabelos?
– Não se lhe veem os cabelos, que estão cobertos com o manto.
– Traz brincos nas orelhas?
– Não sei, porque não se lhe veem também as orelhas.
– Qual é a posição das mãos?
– As mãos estão postas sobre o peito, com os dedos voltados para cima.
– As contas estão na mão direita ou na mão esquerda?
– ……..
A esta pergunta a criança responde primeiro que estavam na mão direita, mas em seguida, devido a insistência da minha parte, mostra-se perplexa e confusa, não sabendo precisar bem qual das suas mãos correspondia à mão com que a Senhora segurava o Rosário.
– O que é que a Senhora recomendou à Lúcia com mais empenho?
– Mandou que rezássemos o terço todos os dias.
– E tu reza-lo?
– Rezo-o todos os dias com o Francisco e a Lúcia.
Meia hora depois de terminado o interrogatório de Jacinta de Jesus, aparece Lúcia de Jesus. Vinha, como disse de uma pequena propriedade de sua família, situada a dois quilómetros de distância, onde tinha estado a vindimar. Mais alta e mais nutrida que as outras duas crianças, de tez mais clara, robusta e saudável, apresenta-se diante de mim com um desembaraço que contrasta singularmente com o acanhamento e a timidez excessiva da Jacinta. Singelamente vestida como esta, a sua atitude não denota e o seu rosto não traduz nenhum sentimento de vaidade nem de confusão.
Sentando-se, a um aceno meu, numa cadeira, ao meu lado, presta-se da melhor vontade a ser interrogada sobre os acontecimentos de que ela é a principal protagonista, sem embargo de se sentir visivelmente fatigada e abatida, mercê das visitas incessantes que recebe e dos inquéritos repetidos e prolongados a que é submetida.
Filha de António dos Santos, de 50 anos de idade, e de Maria Rosa, de 48 anos, tem um irmão e quatro irmãs, todos mais velhos do que ela: Maria, de 26 anos, já casada, Teresa, de 24, Manuel, de 22, Glória, de 20, e Carolina, de 15. Completou dez anos de idade em 22 de março do corrente ano.
Tinha oito anos quando fez a sua primeira comunhão. A mãe, tipo da mulher cristã, e da boa dona de casa, entregue às lides domésticas, procurou sempre inspirar aos filhos o santo temor de Deus e levá-los ao cumprimento de todos os seus deveres morais e religiosos. Altamente preocupada com os sucessos que atraem a todo o momento as atenções de milhares de pessoas para a sua pobre habitação, até há pouco tempo ignorada do mundo, nota-se desde logo que o seu espírito hesita, numa ansiedade inquieta, entre a esperança de que sua filha seja realmente privilegiada com a aparição da Virgem e o receio de que ela seja vítima de uma alucinação que lhe traga desgostos e cubra de ridículo toda a sua família.
A uma pergunta minha acerca da piedade da sua Lúcia, responde que não lhe nota nada de extraordinário neste particular, vendo-a rezar da mesma forma e com o mesmo fervor que antes das aparições, exatamente como fazem as suas irmãs.
Dou princípio ao interrogatório da vidente.
– É verdade que Nossa Senhora te tem aparecido no local chamado Cova da Iria?
– É verdade.
– Quantas vezes te apareceu já?
– Cinco vezes, sendo uma cada mês.
– Em que dia do mês?
– Sempre no dia treze, exceto no mês de agosto, em que fui presa e levada para a vila (Vila Nova de Ourém) pelo sr. administrador. Nesse mês vi-a só alguns dias depois, a dezanove, no sítio dos Valinhos.
– Diz-se que a Senhora te apareceu também o ano passado. Que há de verdade a este respeito?
– O ano passado nunca me apareceu (nem antes de maio deste ano); nem eu disse isso a pessoa alguma, porque não era exato.
– Donde é que ela vem? Das bandas do nascente?
– Não sei; não a vejo vir de parte alguma; aparece sobre a carrasqueira, e quando se retira é que toma a direção donde nasce o sol.
– Quanto tempo se demora? Muito ou pouco?
– Pouco tempo.
– O suficiente para se recitar um Padre Nosso e uma Avé Maria, ou mais?
– Mais, bastante mais, mas nem sempre o mesmo tempo (talvez não chegasse para rezar o terço).
– Da primeira vez que a viste não ficaste assustada?
– Fiquei, e tanto assim que quis fugir, com a Jacinta e o Francisco, mas Ela disse-nos que não tivéssemos medo, porque não nos faria mal. Disse: “Não tenham medo que eu não vos faço mal.”
– Como é que está vestida?
– Tem um vestido branco, que desce até um pouco abaixo do meio da perna, e cobre-lhe a cabeça um manto, da mesma cor, e do mesmo comprimento que o vestido.
– O vestido não tem enfeites?
– Veem-se nele, na parte anterior, dois cordões dourados, que descem do pescoço e se reúnem por uma borla, também dourada, à altura do meio do corpo.
– Tem algum cinto ou alguma fita?
– Não tem.
– Usa brincos nas orelhas?
– Usa umas argolas pequenas e de cor amarela.
– Qual das mãos segura as contas?
– A mão direita.
Perguntei de onde era, e ela respondeu-me que era do Céu
Lúcia de Jesus
– Eram um terço ou um rosário?
– Não reparei bem.
– Terminavam por uma cruz?
– Terminavam por uma cruz branca, sendo as contas também brancas. A cadeia era também branca.
– Perguntaste-lhe alguma vez quem era?
– Perguntei, mas declarou que só o diria a 13 de outubro.
– Não lhe perguntaste de onde vinha?
– Perguntei de onde era, e ela respondeu-me que era do Céu.
– E quando foi que lhe fizeste essa pergunta?
– Da segunda vez, a treze de junho.
– Sorriu-se alguma vez ou mostrou-se triste?
– Nunca se sorriu nem se mostrou triste, mas sempre séria.
– Recomendou-te, e aos teus primos, que rezassem algumas orações?
– Recomendou-nos que rezássemos o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário, a fim de se alcançar a paz para o mundo.
– Mostrou desejos de que no dia treze de cada mês estivessem presentes muitas pessoas na Cova da Iria?
– Não disse nada a esse respeito.
– É certo que te disse um segredo, proibindo que o revelasses a quem quer que fosse?
– É certo.
– Diz respeito só a ti ou também aos teus companheiros?
– A todos três.
– Não o podes manifestar ao menos ao teu confessor?
(A esta pergunta guardou silêncio, parecendo um tanto enleada e julguei não dever insistir, repetindo a pergunta).
– Consta que, para te veres livre das importunações do sr. administrador, no dia em que foste presa, lhe contaste, como se fosse o segredo uma coisa que o não era, enganando-o assim e gabando-te depois de lhe teres feito essa partida: é verdade?
– Não é; o sr. administrador quis realmente que eu lhe revelasse o segredo, mas como eu não o podia dizer a ninguém, não lhe disse, apesar de ter insistido muito comigo para esse fim. O que fiz foi contar tudo o que a Senhora me disse, exceto o segredo, e talvez por esse motivo o sr. administrador ficasse julgando que eu lhe tinha revelado também o segredo. Não o quis enganar.
– A Senhora mandou que aprendesses a ler?
– Mandou, sim, da segunda vez que apareceu.
– Mas se a Senhora disse que te levaria para o Céu no mês de outubro próximo, para que te serviria aprenderes a ler?
– Não é verdade isso: a Senhora nunca disse que me levaria para o Céu em outubro, e eu nunca afirmei que ela me tivesse dito tal coisa.
Não é verosímil que três crianças de tão tenra idade, uma delas apenas com sete anos, rudes e ignorantes, mintam e persistam na mentira durante tantos meses, posto que sejam tão obsediadas com perguntas e interrogatórios de toda a ordem e ameaçadas pelos representantes da autoridade eclesiástica e da autoridade civil e por tantas pessoas a quem elas devem respeito e consideração
Padre Manuel Nunes Formigão
– O que declarou a Senhora que se devia fazer ao dinheiro que o povo deposita na Cova da Iria ao pé da carrasqueira?
– Disse que o devíamos colocar em dois andores, levando eu, a Jacinta e mais duas meninas um deles, e o Francisco, com mais três rapazes, o outro, para a igreja da freguesia. Parte desse dinheiro seria destinado ao culto e festa da Senhora do Rosário e a outra parte para ajuda de uma capela nova.
– Onde quer ela que seja edificada a capela? Na Cova da Iria?
– Não sei: ela não o disse.
– Estás muito contente por Nossa Senhora te ter aparecido?
– Estou.
– No dia treze de outubro Nossa Senhora virá só?
– Vem também S. José com o menino, e será concedida a paz ao mundo.
– E fez mais alguma revelação?
– Declarou que no dia 13 fará com que todo o povo acredite que ela realmente aparece.
– Por que razão não raro baixas os olhos deixando de fitar a Senhora?
– É que ela às vezes cega.
– Ensinou-te alguma oração?
– Ensinou; e quer que a recitemos depois de cada mistério do rosário.
– Sabes de cor essa oração?
– Sei.
– Diz lá…
– Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as alminhas todas para o Céu, principalmente aquelas que mais dele precisarem.
Das respostas das crianças e mais ainda da sua atitude e modo de proceder em todas as circunstâncias em que se têm encontrado, resulta, com uma clareza, que parece excluir toda a dúvida, a sua perfeita e absoluta sinceridade.
Não é verosímil que três crianças de tão tenra idade, uma delas apenas com sete anos, rudes e ignorantes, mintam e persistam na mentira durante tantos meses, posto que sejam tão obsediadas com perguntas e interrogatórios de toda a ordem e ameaçadas pelos representantes da autoridade eclesiástica e da autoridade civil e por tantas pessoas a quem elas devem respeito e consideração. Nenhuma consideração, nenhum temor é capaz de demovê-las de afirmar que veem Nossa Senhora. Nem a prisão a que as sujeitam, depois de as arrancar violentamente ao seio da família e de as levarem para longe da terra, em que nasceram e têm vivido, as intimidações exercidas por elementos do povo, que chegam ao extremo de ameaçá-las com a morte, se um dia forem depreendidas em mentira flagrante. A naturalidade e franqueza com que se expressam, a simplicidade e candura que manifestam, a indiferença e desinteresse que mostram quanto ao facto de se lhes prestar ou não crédito, a timidez extrema da Jacinta, as próprias contradições aparentes, facilmente explicáveis, em que caiem e que excluem em absoluto qualquer combinação entre as crianças, são tudo indícios de que as crianças possuem, no mais alto grau, um dos requisitos indispensáveis numa testemunha para ser fidedigna: a veracidade.
Mas serão as crianças vítimas de uma alucinação? Estarão iludidas, julgando ouvir, e não ouvindo, julgando ver, e não vendo? Verificar-se-á no caso sujeito a hipótese de autosugestão?
Mas como, se nada autoriza semelhante suposição, de todo o ponto gratuita? Não se trata de uma só testemunha, são três.
Não se trata de adultos, mais sujeitos a alucinações, mas de crianças. E que crianças! Crianças de tenra idade, dotadas de perfeita saúde, e que não manifestam o mais pequeno sintoma de histerismo, segundo a declaração de um médico consciencioso que as examinou cuidadosamente.
Dar-se-á o caso, não raro sucedido, de uma intervenção diabólica?
O anjo das trevas transforma-se algumas vezes em anjo de luz, para enganar os crentes. Verificar-se-á isso agora? A Jacinta afirma que o vestido da Senhora chega apenas aos joelhos. A Lúcia e o Francisco declaram que desce até próximo dos artelhos. Haverá neste ponto confusão da parte das crianças, sobretudo por parte da mais nova? Se não, este ponto torna-se difícil de explicar e resolver.
Serão os acontecimentos de Fátima obra de Deus? É cedo demais para responder com segurança a esta pergunta. A Igreja ainda não interveio, nomeando a respetiva comissão de inquérito
Padre Manuel Nunes Formigão
Nossa Senhora não pode, evidentemente, aparecer senão o mais decente e modestamente vestida. O vestido deveria descer até perto dos pés. O contrário, posta de parte a hipótese de um engano das crianças, aliás admissível, porque podiam não ter reparado bem, não ter podido examinar perfeitamente o traje da aparição, tanto mais que não possuem o dom da infalibilidade, o contrário, digo, constitui a dificuldade mais grave a opôr à sobrenaturalidade da aparição e faz nascer no espírito o receio de que se trata de uma mistificação, preparada pelo espírito das trevas. Mas como explicar a concorrência de tantos milhares de pessoas, a sua fé viva e a piedade ardente, a modéstia e compostura que mostram em todos os seus atos, o silêncio e recolhimento da multidão, as conversões numerosas e retumbantes ocasionadas pelos acontecimentos, o aparecimento de sinais extraordinários no céu e na terra, verificados por milhares de testemunhas, como explicar, repito, todos estes factos e conciliá-los com a providência divina e a economia que rege o mundo sobrenatural, sobretudo depois do estabelecimento do cristianismo, se o demónio é que é a causa ou a ocasião de semelhantes factos?
Resta, pois, uma única solução. Serão os acontecimentos de Fátima obra de Deus? É cedo demais para responder com segurança a esta pergunta. A Igreja ainda não interveio, nomeando a respetiva comissão de inquérito.
Quando o fizer, a missão desta comissão será relativamente fácil de cumprir. No próximo dia 13 de outubro, ou tudo se desfará como por encanto, ou novas provas, inteiramente concludentes, virão confirmar as que já existem em favor da realidade das aparições da Virgem.”
Autor: João Francisco Gomes
Fonte: Observador
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