Nas traseiras do sapateiro mora o tempo antigo. O sapateiro sobrevive: lojeca de pequena coisa, espaço diminuto. Espreito o interior. O lusco-fusco já adormece Portel, a noite avança tímida, pé ante pé.
A porta está aberta, ninguém lá dentro. “O que é?”, pergunta-me Ana Rojas atrás de mim. “Uma raridade”, respondo, “um sapateiro”. Um sapateiro de remendar solas ou de botar solas novas, de sovela e cabedais, de fazer sapatos e botas à medida. Na vila de Portel ainda existe. Fronteiro ao largo onde a Câmara se planta.
A curiosidade empurra-me para dentro da botica. Ana acompanha-me. Contemplo as formas. Atento nas prateleiras. Nisto, ele – o sapateiro – está ao meu lado. De onde surgiu? Neste espaço de sombras, apareceu como se revelam os feiticeiros: assim, num piscar de olhos, num estalar de dedos. E tem voz: “Querem alguma coisa?”. “Queremos ver”. “Vejam”. Deixou-nos a mirar. Meto conversa: é sapateiro desde a meninice, lições aprendidas do pai, ofício arrastado de há mais de 40 anos. As rugas do rosto e os calos das mãos são-lhe a farda. O apelido disse-me. Para mim é O sapateiro, que hoje são tão raros que qualquer um é O.
Que encomendas são poucas: agora compra-se para bater e deitar fora. Mas ainda há quem mande fazer umas botas. Quem queira remendar a sola rota, ou meter biqueiras. O que já não existem são aprendizes, quem almeje ser continuador. “Vai dando, não muito mas vai dando…”, explica-me para justificar a teimosia de permanecer no seu posto, de não se deixar baldar pelo tempo e pelas modas do tempo.
Engraçou connosco. “Não bebem nada?” Como recusar? Abre a porta para desvendar outra sala, sala traseira, mais ampla esta, iluminada a lâmpadas temerosas de despir penumbras. Uma mesa grande, dois amigos sentados degustam chouriço assado e beberricam. Garrafa com tinto à disposição. Nas prateleiras um “utensílio” das Caldas. Na parede, afixada ementa de fazer corar os menos atrevidos e sem necessidade de malagueta. “Leiam, leiam”. Leio e rio-me. Ana quer ler: não lhe tapo os olhos que a nossa idade dispensa pudores. Afinal, aprendemos a ler nas escola e foi também para estas coisas que nos ensinaram.
Riem-se eles. Rimo-nos todos. Aventuramo-nos no chouriço e atrevemo-nos no tinto antes das despedidas.
As traseiras d’O sapateiro servem para acolher os amigos. Quando voltar a Portel, bato-lhe à porta: para comprovar resistências.
Infelizmente também todos os da reportagem “fotografica”, já partiram…